Giovanna perdeu a visão ainda bebê e se transformou numa das maiores sopranos do Brasil; hoje, apresenta programa na TV junto com os tenores Armando Valsani e Jorge Durian
Publicado em: 12 de março de 2022 às 03:03
Atualizado em: 12 de março de 2022 às 05:54
Sérgio Fleury Moraes
Ela nasceu em Santa Cruz do Rio Pardo e a família ainda é expressiva na cidade. Giovanna Maira tem uma história de superação e inigualável talento, que a transformou numa das cantoras líricas mais famosas do Brasil. Hoje a soprano não apenas canta, mas é a apresentadora do programa “A Bella Itália”, da Rede Vida de Televisão, juntamente com os tenores Armando Valsani e Jorge Durian. A atração está no ar desde 2018 e é apresentada nas noites de sábado a partir das 19h.
Aos 35 anos, Giovanna tem muita história para contar, a maioria de superação. Ainda bebê, começou a ter um problema na visão que logo recebeu um diagnóstico cruel. Era retinoblastoma, um tumor maligno na retina que afeta quatro a cada um milhão de crianças no mundo todo.
A doença ganhou destaque no noticiário nos últimos meses porque a filha do apresentador Tiago Leifert foi diagnosticada com a mesma doença. Lua tem pouco mais de um ano e está em tratamento.
Mas há três décadas não havia recurso algum para o tratamento e os pais de Giovanna se viram diante de uma arriscada realidade. A cirurgia, segundo os médicos, poderia dar uma sobrevida de seis meses à criança; caso contrário havia o risco iminente de morte em até 15 dias.
A pequena Giovanna, porém, não desistiu. Ao contrário, a cirurgia serviu como uma experiência de fé. Ela sobreviveu, atribui o milagre a Deus e, sem enxergar desde os primeiros anos, começou a demonstrar um talento musical extraordinário desde a infância.
Por conta da doença nos olhos, Giovanna morou pouco tempo em Santa Cruz, pois os pais retornaram para Osasco, onde moravam os avós maternos. “Mas eu sempre retornava, pois tenho parentes. A cidade sempre esteve presente na minha infância e tenho um enorme orgulho de dizer que nasci em Santa Cruz do Rio Pardo”, disse.
Aliás, as brincadeiras com as primas em Santa Cruz, durante as temporadas de férias, sempre envolviam música. Menina travessa, fez de tudo quando era criança, inclusive tocar bateria em panelas, subir no telhado, empinar pipa e andar de bicicleta na rua. Sim, Giovanna sempre foi destemida e ótima aluna nos bancos escolares.
A pequena santa-cruzense começou a estudar música aos três anos, canto aos dez, entrou no conservatório aos 12, se formou em canto popular em Osasco e, aos 17, ingressou na USP — Universidade São Paulo — para estudar canto e arte lírica. O curioso é que, até então, Giovanna não apreciava o canto erudito, pelo qual acabou se apaixonando nos tempos da USP.
Não foi fácil, mas Giovanna aprendeu a vencer os desafios da vida. Ela teve a ajuda de colegas e professores para copiar as partituras e ainda usava uma máquina em braile que os pais importaram da Alemanha.
O sucesso veio cedo. Em 2005, cantou no Ginásio do Ibirapuera para a campanha “Criança Esperança”, da Rede Globo e, no ano seguinte, participou de um concurso mundial de jovens talentos com deficiência. A soprano venceu concorrentes de 86 países com a canção “Can You Feel the Love Tonight”, de Elton John, da trilha de O Rei Leão. Além do prêmio, ganhou o direito de se apresentar no John F. Kennedy Center, em Washington, nos Estados Unidos.
Mais um ano e Giovanna interpretou a “Bachiana nº 5”, de Villa-Lobos na abertura do Parapan de 2007, no Ginásio do Maracanãzinho, no Rio de Janeiro. Ela foi acompanhada pela “Orquestra Bachiana Jovem”, regida pelo maestro João Carlos Martins, outra personalidade brasileira cuja característica, além do enorme talento, é a superação. Pianista conhecido no mundo todo, ele perdeu parcialmente os movimentos das mãos e teve de se reinventar como maestro.
Começou, então, uma parceria que perdura por mais de 15 anos. Giovanna e João Carlos Martins viajaram por todo o Brasil e criaram um programa pioneiro de balé para cegos. Como é necessário enxergar para ser regida, a dupla criou uma técnica diferente, de Giovanna se guiar pela respiração. “Até então, eu só tinha sido regida por maestro como participante de coro. É mais fácil, pois você acompanha os demais colegas do coral. Com o João, aprendi a perceber a respiração dele, que era forte para que eu ouvisse. Foi uma experiência nova que eu acrescentei à minha vida”, disse.
Aliás, há quatro anos Giovanna Maira aceitou iniciar outra experiência num cenário diferente: a televisão. Na verdade, tudo começou quando a cantora tinha 13 anos e se apresentava num evento, enquanto Jorge Durian participava de outro bloco, na companhia de mais dois tenores brasileiros. De repente, Durian convidou Giovanna para subir ao palco naquele bloco para cantar “Aquarela do Brasil”.
Mais tarde, eles se reencontraram num show no Memorial da América Latina e, então, começou uma intensa amizade. “Ele produziu um dos meus álbuns e a gente começou a viajar promovendo shows em navios de cruzeiro. Em 2017, o Armando Valsani, que já era meu conhecido e parceiro de Durian, entrou nesta brincadeira”, contou.
No final daquele ano, surgiu o trio “A Bela e os Tenores” num álbum natalino que fez muito sucesso. Os três começaram a ser chamados para participar de shows da Rede Vida até que a emissora decidiu fazer um convite para um programa próprio. “Foi tudo muito rápido, mas acredito que era um plano de Deus”, disse Giovanna. A primeira reunião com diretores da emissora foi no início de 2018, quando se discutiu um programa voltado à música italiana. O piloto, gravado em março, foi tão espetacular que no mês seguinte o programa “A Bella Itália” fazia sua estreia na Rede Vida.
“A Rede Vida dedicou muito carinho ao programa, que recebe muitos elogios. ‘A Bella Itália’ está num horário nobre, no início das noites de sábado. Nós três nunca tivemos experiência como apresentadores, mas a nossa missão era fazer o programa dar certo”, conta. “E creio que o diferencial foi justamente a amizade e a cumplicidade dos três, pois o programa tem música, cultura e muita tradição, abordando tudo de uma forma harmônica e diferente”, explica.
Segundo Giovanna Maira, o fato de o programa ser muito autêntico agrada ao público. “A gente é mesmo tudo aquilo que está no palco. Não há nada produzido e tudo é real, inclusive as brincadeiras”, avalia. A cantora faz questão de lembrar que a Rede Vida nunca questionou o fato de ela ser cega ou como iria ser sua postura no palco.
Assim, a santa-cruzense Giovanna se tornou a primeira pessoa com deficiência a apresentar um programa de televisão no Brasil — e em rede nacional. “Para mim, é a grande emissora brasileira em matéria de inclusão, me vendo como uma artista com meus próprios talentos. E ponto”, afirmou. “É um exemplo para todos, pois a inclusão não deve ser apenas da boca para fora”.
Se apresentar um programa dedicado à música italiana aconteceu por acaso, para Giovanna a Itália está intimamente ligada à sua família. Seus avós são descendentes de imigrantes italianos — o avô Carlito, descendente dos Carlomagnos, foi dono da loja “Carlito Calçados” em Santa Cruz do Rio Pardo durante muitos anos.
Curiosamente, a colônia italiana em Santa Cruz foi uma das maiores do interior paulista. Era tão grande que em 1902 o jornal “Correio do Sertão” publicava a coluna “Sezione Italiana”, escrita totalmente em italiano. Até hoje, a presença das famílias dos imigrantes ainda é muito forte em Santa Cruz do Rio Pardo.
“Hoje no Brasil somos mais de 30 milhões de descendentes italianos e nossas culturas são semelhantes. Somos povos alegres e festeiros, que valorizam a família e a música, religiosos e trabalhadores”, contou Giovanna. “É por isso que a música italiana desperta as memórias dos bisavôs, avôs ou até dos pais. Enfim, lembranças afetivas muito fortes”, avaliou.
No entanto, o programa “A Bella Itália” não é exclusivamente italiano. “A gente abre espaço para música internacional como um todo. Já apresentamos músicas da Broadway, dos ingleses, espanholas, boleros do México, tango argentino e até canções da Armênia, pois os antepassados do Jorge Durian são armênios”, contou.
Apesar do programa semanal na Rede Vida, Giovanna ainda encontra tempo para percorrer o Brasil com o show que tem o mesmo nome, “A Bella Itália”, com a presença dos tenores. Nos últimos anos, se apresentou em Ibirarema, Paraguaçu Paulista, Tarumã e outros municípios próximos.
Porém, seu grande sonho é trazer “A Bella Itália” para Santa Cruz do Rio Pardo, sua cidade natal. Ela já emocionou o público na Igreja Matriz de São Sebastião em 2017, num evento patrocinado pela Special Dog, mas acredita que o show que teve origem no programa de TV pode ser encantador para todas as famílias.
“As pessoas acreditam que a música clássica é apenas para um nicho restrito. Mas é preciso popularizar esta música para que o povo tenha acesso. Afinal, o show tem música popular, sertaneja ou erudita. Enfim, a população tem o direito de conhecer as várias formas de expressão cultural”, disse.
Irrequieta, Giovanna Maira não para. Em 2016 ela lançou a autobiografia “Escolhi a Vida” (Sesi SP Editora), sua primeira aventura na literatura. A apresentação mostra sua visão da vida: “Tendo deficiência visual desde meu primeiro ano de vida, aprendi que o mundo, apesar de ser recheado de imagens e cores, também é repleto de maravilhas que os olhos não são capazes de enxergar”.
Claro que ela não diz, mas uma dessas maravilhas, sem dúvida alguma, é a voz da soprano de Santa Cruz do Rio Pardo que encanta multidões pelo País e milhões de telespectadores da Rede Vida nas noites de sábado.
* Colaborou Toko Degaspari
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