Ilustração de Leandro Gonçalez representa o coronel Tonico Lista segurando uma garrucha
Publicado em: 18 de junho de 2022 às 02:17
Atualizado em: 22 de junho de 2022 às 17:44
Sérgio Fleury Moraes
Era a manhã do dia 8 de julho de 1922. O coronel Antônio Evangelista da Silva, o incontestável chefe político “Tonico Lista”, cumpre seu ritual diário de ir à venda de seu amigo Mizael de Souza Santos, o “Zaeca”, onde costumava tomar café e ler jornal. Naquela manhã, ele ainda conferia uma caderneta de um “matador de formigas” da prefeitura. De repente, um soldado da Força Pública entra, bebe uma pinga, sai pela rua e retorna novamente. Tonico percebe algo estranho, mas não teve tempo. Segundo depois, ele é mortalmente alvejado a tiros. Não morreu na hora, mas não suportou a viagem de trem para São Paulo, em busca de recursos médicos.
Terminava ali a história de um dos vultos mais fascinantes da história de Santa Cruz do Rio Pardo. Tonico Lista saía da política do município para se transformar em uma lenda, um facínora para os opositores e um homem corajoso, tenaz e ótimo gestor para quem o defendia.
Quase um século depois, o coronel ainda divide opiniões. Sua biografia mais importante é o livro “Coronel Tonico Lista, o Perfil de Uma Época”, do escritor santa-cruzense José Ricardo Rios (1929-1998) lançado pelo DEBATE em 2004 e que se tornou um marco histórico sobre a vida do líder político. A partir desta obra, se intensificaram as pesquisas sobre a vida de Tonico.
José Ricardo Rios quebrou paradigmas, mostrando um coronel humano, preocupado mais com a sua cidade do que propriamente com a própria vida. “Atacá-lo com ou sem provas concretas era tarefa cotidiana dos que se opunham à sua liderança. Defendê-lo competia aos seus leais seguidores. Julgá-lo, agora, é tarefa de Deus”, conclui o escritor no livro.
De fato, a história do coronel que veio de São Simão ainda adolescente é tão rica que o ator santa-cruzense Umberto Magnani Netto, que morreu em 2016, pensava em transformá-la num filme ou minissérie.
Tonico dominou a política de Santa Cruz por muitos anos e seu prestígio ultrapassava as fronteiras do Estado. Foi amigo de políticos expressivos da velha república brasileira. Entretanto, ele preferiu permanecer na cidade do que dar voos mais altos. Com sua morte, cresceu a influência do coronel Ataliba Leonel, ligado a Piraju, que logo foi eleito senador estadual, cotado para ser o governador de São Paulo e ganhou o título honorífico de “general” em 1926.
Antônio Evangelista da Silva chegou com os pais em Santa Cruz no final do século XIX. Era ainda muito jovem quando convenceu o pai, João Evangelista, a vender a casa comercial e se aventurar no sertão de São Paulo. Ele pressentia que aquela vila em desenvolvimento era a sua chance de fazer fortuna.
Enquanto iniciava sua vida profissional na pequena Santa Cruz, Tonico teve seu primeiro contato com a violência em 10 de junho de 1892. Naquela noite, ele se arrumou e seguiu para a casa da meretriz Maria Antonia, perto da antiga Igreja Matriz de São Sebastião. Vestiu seu melhor terno e não se esqueceu do revólver “Smith Wesson” calibre 38. O problema é que naquele mesmo 10 de junho uma comitiva da “Escolta de Captura da Força Pública do Estado” pernoitava na cidade com a missão de, no dia seguinte, capturar em São Pedro do Turvo a figura mística de “Frei Manoel” e seus seguidores, que perturbaram a população da vizinha cidade.
Quando Tonico já estava nos braços de Maria Antonia, dois destes soldados, bêbados, ameaçam arrombar a porta da casa. Tonico avisa que a mulher está ocupada e sugere que os dois vão dormir. Mas os soldados invadem o meretrício com armas em punho e segue-se um tiroteio com o jovem. Um deles é morto e o outro fica gravemente ferido.
Apesar da legítima defesa, o pai aconselha Tonico a se esconder por alguns dias. Com a proteção do coronel Batista Botelho, o chefe político daquela época, e com a defesa feita pelo advogado Frederico Carr Ribeiro, a absolvição do jovem foi rápida. Ele foi denunciado em julho de 1892, preso em agosto do mesmo ano e julgado e absolvido em setembro pelo juiz Augusto José da Costa. Não houve apelação.
Livre do processo, Tonico ganhou fama como o jovem destemido que enfrentou e matou os soldados. Começava, então, sua trajetória na política. Ainda no final do século XIX, ele se filia ao PRP e torna-se um dos mais importantes aliados do coronel Batista Botelho. Em pouco tempo, já era dono de seu próprio negócio, a “Loja do Lista”, que se transformaria numa das mais fortes de Santa Cruz do Rio Pardo.
A biografia romanceada de José Ricardo Rios conta que Tonico admirava a beleza de Guilhermina Brandina da Conceição, a mulher do coronel Botelho. Todavia, respeitava seu chefe político e só teria aberto seu coração para um amigo confidente, o comerciante Mizael de Souza Santos. Porém, guardou durante anos aquele amor platônico por Guilhermina.
Na virada para o século XX, entretanto, há uma reviravolta na política, com a perda do mando político do coronel Botelho. A oposição, liderada pelo primeiro deputado federal ligado a Santa Cruz, Costa Júnior – o “Costão” – elege o médico Francisco Sodré como chefe político e presidente da Câmara. Não havia o cargo de prefeito municipal.
A “Loja do Lista” passou a ser o local de encontro dos dissidentes do PRP ligados ao coronel Batista Botelho, onde Tonico costumava servir uma garrafa de “cinzano” ao grupo — a bebida surgiu na Itália em 1757. O ex-chefe político, porém, estava provavelmente com depressão desde que perdeu o mando político.
No dia 2 de julho de 1902, o coronel Batista Botelho resolve dar fim à própria vida, atirando contra o ouvido. Tinha menos de 50 anos. Apesar dos esforços médicos, ele morreu no dia 8 de julho.
O jornal “Correio do Sertão” publica capa em homenagem a Botelho, lembrando que seu enterro fora o maior já registrado no sertão de Santa Cruz do Rio Pardo.
No ano seguinte, Tonico Lista já era considerado o chefe político da oposição. Era querido pela população e, ao mesmo tempo, temido. Estavam postas as duas condições para o coronel chegar à chefia política do município, o que aconteceu logo em seguida.
Em julho de 1904, o coronel se casou com a viúva de Batista Botelho, a mesma Guilhermina Brandina da Conceição cuja beleza tanto o perturbava anos antes.
Evangelista já era rico, dominava a política e a ele eram atribuídos, sem provas, crimes que aconteciam na comarca. Pouco importavam os prefeitos nomeados, já que todos eram indicados por Tonico a partir de 1906.
Foi quando chegou à cidade um juiz jovem disposto a exercer a justiça com independência. Até então, o primeiro juiz da comarca, Augusto José da Costa — irmão e sogro do deputado “Costão” – era ligado ao grupo de Sodré.
Tonico não gostou da atuação do jovem juiz Francisco Cardoso Ribeiro. Este, avisado por alguns amigos, decidiu visitar o coronel e, inclusive, confrontá-lo. O primeiro encontro foi cordial, mas dias depois houve uma discussão ríspida. O coronel, então, deu 24 horas para o jovem juiz deixar Santa Cruz.
Alertado pelo comerciante João Dalmati de que sua vida corria sério perigo, o juiz percebeu que aguardar o trem na estação era um risco, já que poderia ser alvo fácil de atiradores. Foi, então, que ele seguiu para Bernardino de Campos escondido na carroça de pão de Dalmati. Pouco antes de embarcar, ele disse ao amigo que aquela humilhação não ficaria assim. “O coronel vai me pagar, nem que demore. Um dia eu o destruirei”, teria dito o magistrado, segundo o livro de José Ricardo Rios. Era o ano de 1909.
A liderança política de Tonico Lista seguia incontestável. Em toda a região, ele tinha correligionários e admiradores. E muitos inimigos. Os adversários chamavam o grupo do coronel de “jagunços”, enquanto a turma da oposição recebeu o apelido de “pica-pau”. Assim foram batizados os dois grupos antagônicos de Santa Cruz do Rio Pardo.
Em 1914, por exemplo, Tonico convidou para ser o prefeito de Santa Cruz o desconhecido Agnello Villas Bôas, pai do sertanista Orlando Villas Bôas — que nasceu no bairro conhecido como “Chafariz”. Os prefeitos eram trocados, mas quem comandava a política santa-cruzense era, de fato, Tonico Lista. O coronel consolidou, enfim, um dos maiores impérios políticos do interior do Estado.
São atribuídas a Tonico Lista obras como a construção do Grupo Escolar, a reforma da cadeia pública e Fórum, a remodelação do jardim público, o prédio da Câmara Municipal, a implantação de guias e sarjetas nas principais ruas da cidade, o alinhamento de avenidas, a conservação de estradas rurais e a construção de uma ligação por terra com Salto Grande.
Tonico era tão poderoso que um simples aniversário era motivo para ser capa de jornal, como saiu na edição de 8 de setembro de 1915 em “O Contemporâneo”. Entretanto, a oposição crescia, enquanto um acontecimento iria selar seu destino para sempre.
Em 1920, Washington Luís vira presidente de São Paulo — como era chamado o cargo de governador na época — e nomeia um magistrado como secretário de Justiça e Segurança Pública. Era ninguém menos do que Francisco Cardoso Ribeiro, aquele mesmo juiz que havia deixado Santa Cruz do Rio Pardo escondido numa carroça de pão.
A vingança planejada onze anos antes estava prestes a acontecer. O novo secretário paulista muda a estrutura da polícia e do Judiciário em Santa Cruz do Rio Pardo. O novo juiz era Arthur Minch, o promotor nomeado era Ricardo Gumbleton Daunt — atualmente o nome do Instituto de Identificação da Polícia Civil de São Paulo — e o delegado empossado era Coriolano de Araújo Gois Filho, que mais tarde foi o chefe da polícia do presidente Washington Luís e chefe do Conselho do Comércio Exterior no governo de Getúlio Vargas.
Tonico foi formalmente acusado de 15 crimes e contrata os mais conhecidos advogados de São Paulo na época: Júlio Prestes (que mais tarde seria eleito presidente da República), Altino Arantes (governador de São Paulo entre 1916 e 1920) e o jurista Raphael Corrêa de Sampaio. De quebra, o mais conceituado advogado de Santa Cruz também defendia o coronel, o jurista Pedro Camarinha.
O livro de José Ricardo Rios narra a vinda de Júlio Prestes a Santa Cruz e uma conversa com Tonico Lista, que teria sido presenciada por Floberto Cruz e Carlos Rios. A certa altura, o coronel diz que estava cansado da perseguição e que iria chamar “o meu pessoal da Mandaguary”, sua fazenda, e de São Paulo “para semear bala nesta gente toda”.
Prestes dá um pulo no balcão e pede para Tonico ter calma. “Se perdermos aqui, eu garanto sua absolvição no Tribunal de Justiça de São Paulo”, disse. Segundo o escritor José Ricardo Rios, que teve acesso ao processo, muitas acusações foram forjadas na própria delegacia, baseados em testemunhas falsas. Mas tudo não impediu que a promotoria pedisse a prisão do então prefeito Tonico Lista.
Era o ano de 1921 quando o coronel foi recolhido numa sala especial da cadeia pública. A oposição, exultante, fez publicar até uma charge no jornal “O Trabuco”, sob a legenda “o fim de um bandido”. Um texto do semanário diz: “Tonico Lista, o chefe político da situação, está hoje onde devia estar há muito tempo. Ele que tanto mandou, que tanto sangue derramou, que espalhou a desgraça e o luto em tantos lares honrados, tem seu prestígio reduzido à cinza fria do passado”.
Seria o fim da carreira política de Antônio Evangelista da Silva? Ainda não, pois o recurso dos advogados Júlio Prestes, Altino Arantes e Raphael Magalhães foi vencedor no Tribunal de Justiça de São Paulo. Tonico, enfim, foi absolvido e despronunciado em 5 de dezembro de 1921.
Enfurecida, a oposição a Tonico aumenta os ataques ao coronel, chamando-o de “o bandido de São Simão”. Em editorial, o jornal “O Trabuco” ameaça: “Se ousar afrontar os nossos brios e dignidade, receberá a recompensa merecida, mesmo que tenhamos que apelar para a justiça do Mato Grosso: o 44 duplo”.
Logo após se livrar do processo, no final de 1921, Tonico publica uma carta “aos companheiros” no jornal “A Cidade”, pedindo calma na cidade. “Quanto ao meu assassinato, que nossos inimigos pregam e propalam pelas esquinas e pela imprensa, peço aos meus correligionários que não se preocupem com isso. Eu não temo estas ameaças e nem lhes dou ouvidos”, escreveu.
A vitória de Lista logo teve a adesão de indecisos, inúmeras moções de solidariedade e um foguetório que durou vários dias em Santa Cruz.
O ano de 1922 começa com a política em perigosa ebulição e com Tonico vendendo sua fazenda Mandaguary para a sociedade Moinho Santista por uma cifra astronômica, num negócio noticiado pelos grandes jornais do País.
Em abril, durante as eleições estaduais, houve troca de tiros no prédio da Câmara, com a morte de João Cunha, Antonio Andrade e João Paula Garcia, além de outros feridos. Santa Cruz estava em guerra.
Em depoimento à polícia, o fazendeiro Arlindo Crescêncio da Piedade admitiu que a oposição em Santa Cruz se fortaleceu com a posse de Washington Luís no governo paulista e a consequente posse de Cardoso Ribeiro na pasta de Justiça e Segurança Pública. Ele teria montado o “Partido Municipal” por sugestão de Cardoso.
De fato, se a Justiça não conseguiu barrar Tonico, apenas a morte o faria.
Na manhã do dia 8 de julho daquele ano, Tonico estava na venda de Mizael de Souza Santos, que ficava na esquina das ruas Conselheiro Antonio Prado e Saldanha Marinho, quando entra um soldado da Força Pública e pede uma pinga. Sai um pouco e volta pedindo uma nova dose, que não chega a beber.
Tonico percebeu a estranha movimentação e fez menção de se levantar. Neste exato momento, o soldado saca dois revólveres calibre 38 e atira contra o coronel. Tonico pula atrás do balcão, mas novos disparos o atingem. O criminoso foge pela rua Conselheiro Antonio Prado, mas ainda é atingido na clavícula pelo coronel a uma distância de 40 metros.
Imediatamente surge uma multidão para acudir Tonico Lista. Levado para a residência de seu cunhado José Luiz Sobrinho, todos os médicos da cidade são convocados. Um deles é Pedro César Sampaio. Uma junta chega à conclusão de que o coronel deve ser transportado o mais rapidamente possível para São Paulo, em busca de recursos mais avançados. Os tiros atingiram o estômago e um rim de Tonico Lista, provocando hemorragia interna.
Um trem especial é requisitado, mas a locomotiva com um vagão adaptado demora quatro horas chegar. Antes de partir, o coronel ainda diz aos mais íntimos que aquela seria provavelmente sua última viagem. Um outro obstáculo aconteceu no meio do caminho, quando a composição ferroviária foi obrigada a aguardar o deslocamento de tropas federais que iam sufocar um levante armado no Mato Grosso.
Nas proximidades de Mairinque, no bairro conhecido como Pantojo, Tonico Lista dá seu último suspiro. Segundo José Ricardo Rios, “entregou sua alma ao Criador”.
Terminava com a morte a história do mais fascinante chefe político da história de Santa Cruz do Rio Pardo. Quis o destino que ele sofresse o atentado exatamente 20 anos depois da morte do coronel João Batista Botelho, ambos casados com a mesma mulher.
Mas o fantasma de Lista ainda atormentaria seus supostos algozes. O juiz Cardoso Ribeiro chegou ao Supremo Tribunal Federal a partir de 1927, mas teve graves perturbações psicológicas e se suicidou em 16 de maio de 1932 em sua residência no Rio de Janeiro.
O soldado da Força Pública Francisco Alves, o matador do coronel, disse à polícia no auto de flagrante que cometeu o crime a mando de Arlindo Crescêncio da Piedade, Godofredo Negrão e Francisco da Cunha, todos ligados ao juiz Cardoso Ribeiro. Ele receberia 10 contos de réis pela execução.
Julgado em Santa Cruz em novembro de 1922, num júri composto por adversários declarados de Tonico Lista, Francisco Alves foi absolvido. Alegou insanidade.
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