Publicado em: 04 de junho de 2022 às 04:16
André Fleury Moraes
O novo diretor da Organização Social (OS) “Gota de Leite”, que venceu o chamamento público para gerir as unidades de saúde em São Pedro do Turvo, é a mesma pessoa que, enquanto secretário de Saúde de Marília, formalizou um contrato milionário com a entidade da qual hoje é representante — motivo pelo qual acabou denunciado e condenado na Justiça Federal.
Helio Benetti, 54, foi titular da Saúde em Marília entre 2016 e 2017. Foi ele quem assinou, sem licitação, um convênio com a “Gota de Leite” que custaria R$ 26,7 milhões aos cofres públicos do município ao longo dos cinco anos em que permaneceria em vigor.
E foi também ele que, em nome da mesma OS, participou recentemente de uma reunião em São Pedro do Turvo.
A negociação irregular em Marília foi firmada em 2016, logo quando Benetti assumiu a pasta, e não demorou para entrar na mira do Ministério Público Federal — responsável por fiscalizar este tipo de convênio porque sua manutenção é bancada com verbas federais.
O acordo entre a “Gota de Leite” e a prefeitura de Marília previa a prestação de serviços médicos ao PSF — Programa Saúde da Família. Mas foi suspenso em caráter liminar a pedido do Ministério Público Federal, que apontou indícios de irregularidades no caso.
A decisão provisória, porém, não saiu de imediato. E o contrato permaneceu em vigor durante meses, o que prejudicou os cofres públicos do município, segundo diz o MPF.
A Justiça Federal também determinou ao governo de Marília a realização de um chamamento público que seguisse efetivamente a lei de licitações. A concorrência, afinal, foi prejudicada depois que Benetti deu aval à contratação direta da “Gota de Leite”.
A decisão foi de fato obedecida: em 2018, a administração publicou edital e convocou chamamento público para, enfim, contratar uma OS para gerenciar o Programa Saúde da Família.
Mas o edital também apresentou controvérsias e acabou contestado pelos procuradores do MPF. Especialmente quando se comparam o custo do contrato feito em 2018 e o valor daquele que foi formalizado com a “Gota de Leite”.
Se em 2016, sem qualquer procedimento licitatório, foram aprovados R$ 26 milhões para a assinatura do convênio, o edital de 2018 previa o pagamento de R$ 24 milhões para a prestação do mesmo serviço pelo mesmo período.
A diferença de R$ 2 milhões, para o MPF, evidencia o dano causado aos cofres públicos de Marília a partir do contrato irregular com a “Gota de Leite”.
Helio e a entidade acabaram denunciados pelo Ministério Público Federal por improbidade administrativa. O órgão alegou que a contratação irregular da OS violou princípios da administração pública e causou prejuízo ao município.
Os dois foram condenados em sentença de primeira instância que reconheceu a irregularidade no convênio e determinou o pagamento de multa de R$ 198 mil a cada um deles. A ação segue em grau de recurso.
A relação entre Benetti e a “Gota de Leite”, para além do contrato irregular em Marília, ainda não foi totalmente esclarecida. E se torna ainda mais controversa uma vez que o ex-secretário se tornou diretor da mesma OS que beneficiou enquanto titular da Saúde em Marília.
A OS da qual Benetti é hoje diretor venceu o chamamento público em São Pedro do Turvo há cerca de dois meses. Mas seu ingresso no município não foi nem um pouco pacífico.
A “Gota de Leite” substituiu a “Asspross” (Associação de Promoção Social e Saúde), entidade que gerenciava as unidades de Saúde no município até o início deste ano, e teve de lidar com uma debandada de médicos.
O problema aconteceu porque o contrato da “Asspross” venceu e a “Gota de Leite” estava prestes a assumir a gestão de saúde. Porém, um recurso impediu a posse da nova empresa, ao mesmo tempo em que a “Asspross” já havia demitido os médicos.
A solução foi o prefeito Marco Pinheiro firmar um contrato emergencial. No entanto, durante vários dias algumas unidades de saúde de São Pedro ficam sem médicos.
Hoje diretor da “Gota de Leite”, o ex-secretário Benetti é também, curiosamente, um dos fundadores da “Asspross”, entidade que até pouco tempo atrás gerenciava unidades de Saúde de São Pedro do Turvo.
Ainda que não tenha ocupado nos últimos anos um cargo efetivo na diretoria da “Asspross”, Helio era contratado de forma terceirizada, através de uma empresa em seu nome, para prestar “serviços contábeis” à OS que ele mesmo ajudou a fundar.
Isso significa que, apesar da troca de gestão na Saúde de São Pedro do Turvo, o ex-secretário de Saúde de Marília nunca se distanciou do município comandado por Marquinho Pinheiro (PSDB).
Há pouco mais de uma semana, aliás, Benetti estava em uma reunião dentro do gabinete do prefeito Marquinho, da qual participaram também vereadores da base do governo.
O encontro foi divulgado nas redes sociais por Fernando Englert (PL), presidente da Câmara de São Pedro. Na pauta, escreveu o parlamentar, estavam assuntos relacionados ao Programa Saúde da Família.
Benetti foi chamado de “diretor” da Gota de Leite pelo presidente da Câmara. Mas o ex-secretário de Marília parece atuar de maneira discreta: ele não aparece em nenhum documento disponibilizado pela OS em seu “portal da transparência”.
A ausência de informações sobre qual é efetivamente o papel de Helio na “Gota de Leite” contraria a própria regulamentação das Organizações Sociais. Como são entidades sem fins lucrativos, a devida prestação de contas e a transparência nos contratos são obrigações legais.
Em nota, o prefeito Marquinho Pinheiro disse que “Benetti esteve aqui para falar sobre atendimento médicos que a Gota de Leite, empresa vencedora do Certame realiza em Ibirarema, Campos Novos e Ocauçu. Não tratamos de nenhum assunto referente ao período em que trabalhou em Marília. Portanto, não tenho nenhum conhecimento sobre esses fatos e empresa Gota de Leite apresentou todos os documentos que legitimam sua contratação”.
Benetti não é o único indivíduo para quem a política, apesar dos pesares, abriu as portas do mercado. Mas o ex-secretário simboliza uma realidade que acontece em todo o Brasil: aquele que conhece os trâmites da política não fica de fora dela.
Depois de uma passagem turbulenta na administração de Marília, ele foi também assessor parlamentar e ocupou um cargo no governo estadual. Retomou os trabalhos na Saúde em 2020, quando abriu a “Diagnóstico Gestão e Saúde”, empresa voltada a serviços médicos.
A abertura do CNPJ coincidiu com a chegada da Covid-19 ao Brasil, e Benetti se viu diante de um cenário verdadeiramente lucrativo. E conseguiu, com uma empresa recém-criada, fechar contratos com municípios pequenos. Sem licitação e sob o pretexto de combate à pandemia.
Além da condenação pelo contrato irregular que formalizou com a “Gota de Leite”, Helio Benetti coleciona outros escândalos relacionados à sua passagem pela administraçao em Marília. Ele responde a uma ação penal, também na Justiça Federal, em que é acusado de participar de um esquema de fraude em licitações para a compra de aparelhos eletrônicos superfaturados.
O ex-secretário também foi condenado por tortura no âmbito de uma denúncia movida pelo Ministério Público de Marília que o responsabilizou pelo uso de aparelhos de choque em moradores de rua.
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