Ao lado das filhas, Maria Basília segura o quadro com a única foto de Inocência
Publicado em: 03 de abril de 2021 às 01:05
Atualizado em: 06 de abril de 2021 às 10:18
Sérgio Fleury Moraes
Inocência Maria da Conceição nasceu na Bahia em 1859 e já era escrava ao sair da barriga de Ediviges Rodrigues da Silva, sua mãe. A garota nasceu em plena escravatura e, portanto, não conseguiu alcançar sequer a “Lei do Ventre Livre”, que só seria promulgada doze anos depois, em 1871. Na época, o Brasil era um dos últimos países do mundo que ainda mantinham o trabalho escravo, mas já havia um movimento abolicionista forte e atuante. Uma das maiores atrocidades da humanidade só terminaria no Brasil em 1888, com a “Lei Áurea” assinada pela princesa Isabel.
Separada dos irmãos, Inocência foi vendida para um fazendeiro de Santa Cruz do Rio Pardo. Junto com uma amiga também escrava, viajou dias no lombo de um cavalo até chegar à nova cidade e continuar sua saga de escrava. Sofreu os horrores da escravidão, mas serviu seu senhorio como um objeto que lhe pertencia. Inclusive, foi violentada por ele várias vezes, fato comum naqueles tempos sombrios. A escrava não podia deixar de se entregar ao senhorio em hipótese alguma. Nem mesmo matar um escravo era considerado crime.
A amiga de Inocência também era violentada, mas acabou “se engraçando” com o senhorio, o que não era comum. A mulher dele não gostou e, enquanto a escrava servia um jantar, a mulher pegou um facão que escondia debaixo da mesa e literalmente cortou a mão da jovem.
Inocência teve quatro filhos com o senhorio até que veio a abolição da escravatura. A família de Santa Cruz do Rio Pardo chegou a conhecer alguns destes filhos, que já faleceram. O primogênito, por exemplo, tinha quase 90 anos quando a ex-escrava morreu.
A negra bela, com a pele um pouco clara e sofrida, resolveu permanecer em Santa Cruz do Rio Pardo, onde se casou e teve outros filhos. Ela se tornou uma figura respeitada na sociedade, pois era uma requisitada parteira, além de benzedeira. O marido, vários anos mais novo, nunca foi escravo porque tinha a pele ainda mais clara.
A ex-escrava fazia questão de dizer que perdoou seus algozes. Quem conta esta história é sua neta, Maria Basília de Moraes Marques, 83, que mora na mesma casa construída pela avó Inocência. Aliás, no mesmo terreno, pois a residência antiga, de madeira, foi demolida para dar lugar a uma construção de alvenaria. Fica na rua General Gurjão, perto do Tiro de Guerra, onde Maria Basília mora com duas de seus 15 filhos — Isabel e Elizimara. Nas primeiras décadas do século XX nem havia água encanada e a família recorria ao Chafariz, marco zero da história de Santa Cruz que existe até hoje.
“Ela contava muitas histórias para os filhos e netos. Eu gostava de ouvir”, diz Maria Basilia. Inocência viveu até os 104 anos e a idade está confirmada no cadastro do cemitério de Santa Cruz do Rio Pardo. A velha ex-escrava morreu no dia 21 de setembro de 1963. A sepultura dela é perpétua.
Quando Inocência morreu, segundo Maria Basília, uma multidão compareceu ao velório, na casa da família. Havia muitas autoridades, como o médico Pedro César Sampaio, avô do advogado santa-cruzense Luiz Antonio Sampaio Gouveia, colunista do DEBATE. Todo o comércio do bairro São José fechou as portas em sinal de luto. “O doutor Sampaio, por ser baiano como minha avó, não ficava uma semana sem visitá-la. Eles ficavam conversando por horas e o médico gostava muito da vó Inocência”, lembra a neta, orgulhosa pelo fato de a ex-escrava ser muito respeitada na cidade.
Maria lembra que Inocência contava como foi o dia mais feliz da vida dela. “Quando a princesa assinou o fim da escravidão, os negros de Santa Cruz acenderam fileiras de velas nas ruas, percorrendo um trecho desde a caixa d’água, passando pela igreja de São Benedito até o cemitério. Foi uma grande alegria, mas eles ainda viveriam muito tempo sem trabalho e sem conseguir perceber que estavam livres”.
Na verdade, muitos não sabiam conviver com outros patrões, pois haviam servido a um senhorio a vida toda. Na verdade, eles ficaram meio perdidos durante anos”, disse.
O historiador Celso Prado conta que Santa Cruz ainda manteve escravos “informais” mesmo depois da “Lei Áurea”. É que, já antevendo a abolição em razão dos movimentos pelo País, os proprietários de escravos passam a negociar a liberdade dos negros em troca do pagamento de “indenização”, na forma de trabalho obrigatório e gratuito, nunca inferior a um ano. Celso obteve cópias de contratos assinados poucos dias antes da “Lei Áurea”.
Inocência Maria da Conceição se transformou na mais requisitada parteira da época em Santa Cruz. Era comum ela ser chamada e ficar numa fazenda durante dias, aguardando o trabalho de parto de alguma mulher. Como benzedeira, era procurada por pessoas de todas as camadas sociais, desde autoridades a um humilde trabalhador. Muitas levavam crianças ou iam pessoalmente na casa de Inocência, em busca de uma bênção poderosa.
“Vinha gente de longe e minha avó era capaz de benzer a distância. Me lembro de um fazendeiro que a procurou, dizendo que o gado estava morrendo. Ela simplesmente disse que ele poderia voltar em paz e, em seguida, foi para um quartinho da casa para rezar e abençoar a boiada. Depois, o fazendeiro veio agradecer porque não morreu mais nenhuma cabeça”, lembra Maria Basília. Segundo a neta, a avó usava um galho de arruda e um rosário que nunca abandonou.
Aliás, Inocência era muito religiosa. Católica fervorosa, ia à missa na Matriz de São Sebastião todos os dias. Usava um chale nestas ocasiões, que pode ser visto na única fotografia que a família possui da ex-escrava, ao lado do marido. “As pessoas diziam que ela parecia a Nossa Senhora Aparecida”, contou a neta. Inocência frequentava a Matriz numa época em que a igreja era feita de tábuas e os fieis ficavam sentados no chão.
Ao atravessar dois séculos, a maior parte em Santa Cruz do Rio Pardo, Inocência conheceu muitas figuras históricas da cidade. Maria Basília conta que Inocência lembrava do pelourinho instalado na atual praça Major Antônio Aloe, onde os negros eram açoitados ou ficavam dias amarrados. De vez em quando, lembrava, alguns escravos conseguiam fugir. “Mas ela contava que, quando os senhorios os encontravam, os fugitivos eram mortos”, afirma Maria.
Inocência tinha mais de 60 anos quando Tonico Lista foi assassinado, em 1922. “Ela conheceu pessoalmente o coronel, mas falava bem dele. Aliás, ela nunca falou mal de ninguém”, conta a neta. No entanto, a ex-escrava também conheceu vultos históricos como Leônidas do Amaral Vieira, Leônidas Camarinha e Lúcio Casanova Neto. Os dois últimos, ferrenhos adversários nas eleições, a visitavam regularmente, inclusive em busca de alguma bênção. “Minha avó nunca falou de política. Respeitava a todos, independente de partidos políticos”.
Neta da ex-escrava, Maria Basília teve 15 filhos, dos quais oito estão vivos. Ela foi casada com José Marques, o “Zezinho” — “um homem santo” —, e é viúva há 23 anos. Maria e as filhas dizem que têm enorme orgulho de serem descendentes da ex-escrava Inocência. “Para nós, ela foi uma heroína”, afirmou. A família ressalta o fato, difícil para a maioria das pessoas, de Inocência ter perdoado os senhorios da época dura da escravidão.
O interessante é que a única vez em que ela rezou sem o rosário foi na morte. “Minha avó nunca tomava remédio e sofreu uma fratura na bacia durante uma queda. Ficou algum tempo na cama e tinha uma amiga que vinha todos os dias para rezar o terço. No último, ela entregou o rosário à amiga e avisou que era ela quem deveria rezar. Disse, inclusive, que daquele dia em diante não iria mais rezar. Fechou os olhos e morreu”, contou Maria Basília.
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