CULTURA

João Goulart tinha apoio popular quando foi derrubado pelo golpe

Pesquisas do Ibope, que ficaram escondidas durante décadas, mostraram uma enorme popularidade de “Jango”, derrubado por um golpe militar

João Goulart tinha apoio popular quando foi derrubado pelo golpe

João Goulart com John F. Kennedy, o presidente dos Estados Unidos, durante visita oficial

Publicado em: 02 de abril de 2022 às 05:36
Atualizado em: 02 de abril de 2022 às 06:19

Miguel Moyses Abeche Neto

João Goulart, o “Jango” foi um político popular e fez um governo popular. Em 1964, um golpe militar derrubou o presidente e instalou no Brasil uma ditadura. Ao contrário do que dizem os militares para justificar o golpe e a instalação da ditadura que durou 21 anos, o regime deixou como herança uma inflação anual de quase 300%, dívida externa explosiva, desemprego de 20%, País quebrado sem reservas e crédito externo, se socorrendo em gambiarras cambiais e submetendo-se a humilhantes cartas de intenções ao FMI e, consequentemente, entregando o comando do Brasil para fora das nossas fronteiras a fim de fechar as contas externas, como hoje reconhece o czar da economia da ditadura militar, Delfim Neto.

As pesquisas feitas pelo Ibope e Marplan (Instituto dos EUA) desmontam a tese usada pelos militares envolvidos no golpe que destruiu a democracia e o estado de direito, de que o povo “pediu” a intervenção das Forças Armadas. Comprovar o discurso é difícil, até porque dentro das próprias forças havia divisão. Basta ver o tamanho do expurgo nos quartéis feito pelos vencedores.

Um dos principais articuladores do golpe, o marechal Cordeiro de Farias cunhou uma frase que demonstra que a maioria só se definiu na medida em que Jango não reagiu: “O Exército dormiu janguista e amanheceu golpista”.

Jango não reagiu por dois motivos: foi informado do deslocamento de uma frota de navios militares americanos para a costa brasileira, com a finalidade de intervir a favor dos golpistas — inclusive porta-aviões, navios tanques com combustível e toda a parafernália de armamentos. O segundo motivo é a sua índole pacífica e conciliadora.

Na verdade, Jango tinha condições para reagir e ganhar a parada se tivesse reagido nas primeiras horas. A maioria estava esperando uma ordem do presidente que não veio. E ao não reagir, a maioria foi aderindo ao golpe.

 

VÉSPERA — Em 13 de março de 1964, Jango discursa no comício da Central, ao lado da mulher Thereza

 

As pesquisas feitas pelo Ibope entre os dias 25 e 30 de março foram contratadas pela Associação Comercial de São Paulo, envolvida no golpe até a medula. Essa pesquisa nunca foi divulgada por que o resultado não agradaria aos novos donos do poder. No entanto, está nos arquivos do Ibope doados à Unicamp, cujos dados foram levantados há muitos anos por Antônio Lavareda e que recentemente passaram a ser públicos.

São os dados: O Ibope perguntou se Jango pudesse ser candidato à presidência o eleitor votaria nele.

— São Paulo: 40% votariam; 52 % não votariam. Rio de Janeiro: 51% votariam; 44% não votariam. Rio Grande do Sul: 52% votariam; 44% não votariam. Paraná: 50%votariam; 45% não votariam. Minas Gerais: 40 votariam; 54% não votariam. Ceará: 58% votariam; 33% não votariam. Pernambuco: 60% votariam; 28% não votariam. Bahia: 60% votariam; 32% não votariam.

Esses números demonstram o grande apoio que Jango tinha. Tendo em vista que havia candidatos fortíssimos já em campanha — como Juscelino Kubistchek, Carlos Lacerda, Ademar de Barros, Carvalho Pinto, Miguel Arraes, Magalhães Pinto e Alziro Zarur —, a pesquisa demonstra uma enorme força eleitoral do presidente.

Uma outra pesquisa Ibope feita em três cidades de São Paulo no mesmo mês de março de 1964, também demonstra um presidente bem popular no estado.

 

Getúlio acena para o povo em carro aberto; à direita está João Goulart

 

O Ibope perguntou: o que você acha do governo do presidente João Goulart?

Eis os resultados — São Paulo (capital): ótimo/bom 43%; regular 30%; ruim/péssimo 19%. Araraquara: ótimo/bom 40%; regular 23%; ruim/péssimo 21%. Avaí: ótimo/bom 55%; regular 19%; ruim/péssimo 10%.

Com uma “lavagem cerebral”, certa historiografia e um jornalismo duvidoso, se buscou nos últimos 58 anos passar a idéia de que as bases populares do presidente João Goulart estavam corroídas quando ele sofreu o golpe em 1º de abril de 1964.

Mas os números não mentem. Jango gozava de imenso apoio popular quando houve o golpe militar. Apesar de sofrer ataques constantes da grande imprensa — a exceção era o jornal Última Hora —, era querido pela população. Morreu no exílio sonhando voltar para casa, para o galpão de uma estância em São Borja.

 

Juscelino durante campanha em Santa Cruz, ao lado do deputado Leônidas Camarinha; vice João Goulart teve mais votos na chapa

Presidente governou
sob  ameaça constante

João Goulart, o “Jango”, governou sempre na corda bamba. Suas dificuldades começaram ao ser o escolhido por Getúlio Vargas como seu herdeiro político. Dificuldades que chegaram a se apresentar na própria família de Getúlio, principalmente do genro Ernani do Amaral Peixoto, casado com Alzira, a filha preferida de Vargas.

Essa relação entre Getúlio e a família Goulart era antiga. O pai de Jango era amigo e companheiro político e de entreveros da família Vargas. Quando Getúlio foi deposto em 1945 e voltou para São Borja — na fronteira gaúcha com a Argentina — teve em Jango o apoio e a amizade que lhe faltaram dos antigos companheiros de governo e dos eternos bajuladores do poder.

Jango foi o arrimo de Vargas na solidão do pampa gaúcho. Getúlio foi morar na estância Santo Reis, administrada por seu irmão Viriato. A presença do ex-presidente incomodava sua cunhada e acabou causando atritos. Getúlio mudou-se para um pedaço de terra denominado “Itu”, que pertencia ao município de Itaqui entre São  Borja e Uruguaiana.

Jango recuperou os pastos, fez a represa e tornou a área produtiva. Fez ainda companhia para o velho e ganhou sua total confiança.

Em 1947, se elegeu deputado estadual pelo PTB com grande votação na região de São Borja, fronteira com a Argentina. Foi o principal coordenador da campanha que levou Getúlio de volta à presidência, dessa vez pelo voto.

A eleição de Getúlio foi um passeio. Para se ter uma ideia da força do getulismo no estado de São Paulo, até hoje nenhum candidato a presidente conseguiu obter a votação que o “velho” obteve em terras paulistas. Foi um massacre, desmentindo a tese da elite paulista de que Getúlio não era bem-vindo e nem bem-visto pelos paulistas.

Como sempre equivocada e distante da realidade, a elite errou pela segunda vez. É que em 1945 Vargas já havia sido eleito senador pelo povo paulista. Em 1950, o povo matou a saudades de Getúlio e lhe deu 65% dos votos em um único turno. Os paulistas amavam Getúlio.

Em Santa Cruz do Rio Pardo, a eleição presidencial de 1950 foi uma barbada: Getúlio Vargas recebeu 3.791 votos, contra 1.228 de Eduardo Gomes e 467 de Cristiano Machado.

Nessa mesma eleição João Goulart foi eleito deputado federal pelo Rio Grande do Sul. Indicado para secretário do Interior e Justiça, ficou pouco tempo no cargo. Quando foi conduzido à presidência do PTB nacional, assume o mandato e logo se torna ministro do Trabalho do governo de seu amigo Getúlio.

Interessante essa amizade entre Vargas e Jango, ante a diferença de idade, 40 anos, e o estilo de vida. Getúlio era pura política, mas um devorador de livros. Jango era milionário, provavelmente o maior pecuarista do Brasil e amigo de Maneco, filho de Getúlio. Mas foi ele quem se tornou o maior amigo do “velho” no exílio autoimposto de São Borja.

Como ministro do Trabalho, Jango propôs um aumento de 100% no salário mínimo. Alegou que o salário estava muito defasado em relação ao custo de vida e que era preciso conter a queda do poder aquisitivo dos assalariados. Houve uma reação violenta do empresariado e de um grupo de militares que, anos depois, participariam do golpe de 1964. O chamado “manifesto dos coronéis” criou um clima golpista que interferia em assuntos totalmente alheios à área militar.

Getúlio demitiu Jango a pedido do próprio ministro, mas deu o aumento de 100% para o salário mínimo.  A amizade de Goulart e Vargas e a posição pró-trabalhadores de Jango causou ódio no setor das Forças Armadas ligadas a Carlos Lacerda e ao udenismo.

Esse é o ovo da serpente que gerou o golpe e a instalação de ditadura em março e abril de 1964. A campanha que criou a “República do Galeão”, com o assassinato do major Rubens Vaz no atentado da rua Toneleiros em agosto de 1954 e que levou Getúlio ao suicídio, foi o trailer do que seria o golpe de 1964.

Jango foi eleito vice-presidente com 500 mil votos a mais que Juscelino kubitschek, presidente eleito em outubro de 1955 em um eleitorado de 8 milhões. Mas uma vez, os golpistas tentaram impedir a posse dos eleitos, como haviam feito em 1950 contra Vargas.

Em 1960 Jango foi reeleito vice-presidente, quando o voto ao vice era separado do candidato titular. Ele integrava a chapa do marechal Henrique Teixeira Lott, que foi derrotado pelo “furacão” Jânio Quadros. Lott e Jango foram abandonados por Juscelino, que só pensava nas eleições de 1965 e, no fundo, torcia pela derrota da dupla Lott-Jango. Assim como a derrota de Tancredo Neves ao governo de Minas nessa mesma eleição.

Jânio foi a “UDN de porre”, na frase histórica de Afonso Arinos de Melo Franco (ministro das relações exteriores do governo). A gestão Quadros durou sete meses e tentou um golpe com a renúncia, sem sucesso. Naquele momento, o vice estava em viagem oficial à China.

A batalha pela posse de Jango foi um grande momento da história do Brasil,que relatei em artigo de agosto de 2021.

 

Tanques nas ruas em 1964: o golpe militar que implantou a ditadura que perdurou por mais de duas décadas

 

O golpe de 1964 foi a concretização de várias tentativas frustradas de golpe contra Getúlio e Jango. Tudo com o apoio absurdo do embaixador americano no Brasil, Lincoln Gordon, com os Estados Unidos financiando adversários do presidente através da sua embaixada no Brasil, tanto nas eleições de 1962 — através do Ibad e Ipes —, como na preparação, apoio e participação do golpe de 1º de abril de 1964.

Jango herdou várias bombas de efeito retardado na área econômica. Uma inflação herdada da construção de Brasília, de Jânio e de seu ministro da fazenda Clemente Mariani, a inflação corretiva do decreto 204, o fim do ágio cambial que destroçou as finanças federais e dos três patetas que tentaram impedir a posse de Jango.

Além disso, houve uma emissão de moeda para os deslocamentos de tropas, aviões e navios que daria quase para construir mais uma Brasília, provocando insegurança na economia e os sucessivos aumentos de preços causado por boatos de uma possível guerra civil provocada pelos ministros militares de Jânio Quadros.

Tudo isso explodiu no colo do governo Jango, que ainda tinha que conviver com a sabotagens de parte da elite econômica e do embaixador americano Lincoln Gordon. Anos depois, Delfim Netto relatou como sabotavam o governo propagando a inflação através de expectativas terroristas sobre o aumento de preços.

Jango criou o 13º salário para os trabalhadores, construiu a rodovia Rio-Bahia e levou energia elétrica para o Nordeste. Além disso, deixou pronto os projetos para construção da usina de Itaipu e o sistema de telecomunicações brasileira, obras concluídas depois pelo regime militar.

O presidente João Goulart caiu pelas suas qualidades, nunca por seus defeitos.

 

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